Informática Médica: Um Pouco de
História
Michael Hogarth
Durante a última década, o
termo informática médica tem sido crescentemente utilizado
para descrever uma ampla variedade de disciplinas interrelacionadas. Infelizmente,
isto conduziu a um pouco de confusão em relação à
sua definição. Muitos utilizam o termo para descrever tudo
o que diz respeito à computação médica e à
qualquer disciplina relacionada. Porém, o campo de informática
médica está de fato há mais de 30 anos em construção
e tem seu enfoque mais na estrutura da informação médica,
do que nos seus aspectos técnicos.
As origens da disciplina geral de informática podem ser traçadas
a uma publicação russa intitulada Oznovy Informatiki
(Fundamentos da Informática), publicada em 1968. Na época,
foi descrita como um conceito de ciência da informação,
no contexto de uma era emergente de computação. O Dicionário
Oxford de Inglês descreve informática como "a disciplina
científica que investiga a estrutura e as propriedades da informação".
Assim, no seu sentido mais exato, informática médica é
a disciplina que investiga a estrutura e propriedades de informação
médica. De acordo com esta visão, Shortliffe e Perrault descrevem
a informática médica da seguinte maneira:
" é o campo científico que trata do armazenamento,
recuperação, e uso otimizado da informação
biomédica, dados, e conhecimento para a resolução
rápida de problemas e tomada de decisões"
Notavelmente, esta definição não faz nenhuma menção
a computadores ou tecnologia de informação. Ao contrário,
prefere enfocar o tema "informação", em lugar da
ferramenta - o computador.A Informática Médica diz respeito
à informação e como ela é capturada, usada
e armazenada, e não ao equipamento que torna tudo isso possível.
A distinção nem sempre é óbvia. Porém,
entendendo-se o seu significado, percebe-se que as relações
e as propriedades de informação são tão importantes
para a computação médica como o hardware é
necessário para a sua distribuição. Isto é
vital para entender o campo de informática médica e como
ela impactará a computação médica no futuro.
As Origens
A disciplina conhecida como informática médica nasceu
presumivelmente quando foi descrita pela primeira vez em um documento sobre
educação em informática para profissionais de saúde,
em 1974. No entanto, existem exemplos do uso dos princípios gerais
da informática que datam de muito antes. Um cirurgião escocês
chamado Roget inventou um método moderno de representar o conhecimento,
baseado no princípio que todas as coisas "são somente
conceitos", que podem ser descritos de diversas maneiras. Duas maneiras
de descrever o mesmo conceito são chamadas de sinônimos. Além
disso, ele colocou para muitos conceitos os antônimos (conceitos
opostos), e verbos, substantivos e adjetivos relacionados semanticamente
(pelo significado) ao um determinado conceito. Deste modo ele desenvolveu
a Roget's Encyclopaedia of English Words and Phrases em 1852. como
um sistema de achar facilmente um conceito qualquer do idioma, mesmo quando
os indivíduos o descrevem com terminologias diferentes.
De maneira interessante, a metodologia original de Roget foi empregada
novamente pela Biblioteca Nacional de Medicina (National Library of
Medicine) dos EUA em 1986, quando começou o desenvolvimento
do metatesauro do Unified Medical Language System (UMLS). Este metatesauro
é o componente médico de um grande dicionário de nomenclatura,
com a finalidade de satisfazer a necessidade de um vocabulário médico
unificado e interligado através de conceitos. Tal vocabulário
é necessário para categorizar as fontes de informação
biomédicas e facilitar a recuperação de informação.
No entanto, o sistema também ganhou popularidade como um vocabulário
para sistemas médicos computadorizados. No momento, o UMLS é
um empreendimento volumoso, com cerca 500.000 termos e 252.000 conceitos.
Sua grande vantagem é usar sinônimos e equivalências
entre as diversas nomenclaturas padrão da medicina, bem como conceitos
relacionados semanticamente entre si, para proporcionar um sistema escalonável
de acesso a termos que frequentemente ocorrem de maneira diferente em medicina
(por exemplo: sociopatia e personalidade antissocial são a mesma
entidade clínica, com nomes diferentes. O UMLS mapeia todas essas
relações)
O UMLS é o exemplo mais moderno e desenvolvido dos sistemas de
nomenclatura e classificação médica, tão importantes
para o desenvolvimento da informática médica, e que tiveram
início através da Classificação Internacional
de Doenças, atualmente em sua décima versão (CID-10)
e mantida pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Dr. John S. Billings
Outro desenvolvimento importante foi o uso de métodos específicos
de armazenamento de informação e de manipulação
de dados no final do século passado, quando o Dr. John Shaw Billings,
que na época era o Cirurgião General do Exército,
passou a editar o famoso Index Medicus, um índice da literatura
médica mundial. em 1890.
As máquinas tabuladoras, inventadas por Hermann Hollerith para
tabular o censo dos EUA, são consideradas por muitos como a gênese
da revolução de informação. Ele descreveu um
dispositivo eletromecânico que podia ser usado para tabular dados
automaticamente por meio de cartões perfurados, em 1890. O impacto
da tecnologia foi amplamente demonstrado quando se constatou que foram
usadas apenas 56 máquinas Hollerith para processar a informação
do censo de 62 milhões de pessoas, dois anos antes do prazo e custando
5 milhões de dólares a menos que o orçamento previsto!

Uma tabuladora de cartões
perfurados Hollerith
Hollerith deixou o trabalho governamental em 1896, para estabelecer
uma empresa, a International Tabulating Machines, que mais tarde se transformou
na IBM, em 1924. As máquinas tabuladoras foram desde cedo usadas
para processar informação médica, como um projeto
desenvolvido no final do século passado, pelo próprio Hollerith,
de automatização das estatísticas de altas hospitalares
do estado de Nova Iorque.
No final da década dos 40, um dos primeiros computadores digitais
modernos foi usado na Alemanha para automatizar o registro de tumores do
hospital de Heidelberg.


US National Library of Medicine:
primeiras estantes na sua fundação e prédio atual,
em Bethesda, MD.
Incidentalmente, o Dr.Billings também estabeleceu e se tornou
o primeiro diretor da Biblioteca Nacional de Medicina (NLM), tendo inclusive
doado seu primeiro acervo de livros, a partir de sua biblioteca médica
pessoal, A tecnologia foi usada novamente no resultado do trabalho do Dr.
Billings em 1966, quando foi computadorizado o Index Medicus. O sistema
resultante, conhecido como MEDLARS, tornou-se o primeiro sistema de informação
on-line acessível publicamente. Hoje, tais sistemas estão
envolvidos praticamente em todos os aspectos de nossas vidas.
O Amadurecimento
Com a formalização da disciplina em 1974, a informática
médica passou a ser crescentemente reconhecida como um componente
importante da prática global de medicina . Surgiram muitos centros
acadêmicos e de pesquisa de informática médica, com
o interesse de se desenvolver sistemas de registro médico computadorizado
que incorporassem princípios básicos de projeto determinados
pela informática médica. A maioria destes sistemas sobrevive
até hoje e estão até passando por um ressurgimento
devido, aos sistemas de medicina baseada em evidências. Um exemplo
de tal sistema é o Help System, desenvolvido pela Universidade
de Utah, no Later Saints Days Hospital de Salt Lake City, sob a direação
do Dr. Homer R. Warner. Outros exemplos de grupos de informática médica
que desenvolveram sistemas de computação médicos integrados
incluem o TMR (The Medical Record) pela Duke University e o RMR
(Regenstrief Medical Record), na Universidade de Indiana.


Dr. Edward Shortliffe, na época
em que desenvolveu o sistema MYCIN (à esq.). Dr. Homer R. Warner,
um dos pioneiros da informática médica dos EUA (à
dir).
Outras áreas que deram um grande ímpeto à Informática
Médica foram a das aplicações da Inteligência
Artificial à medicina, a qual se iniciou com o desenvolvimento dos
primeiros sistemas especialistas de apoio à decisão, como
o MYCIN, desenvolvido pelo Dr. Edward Shortliffe, de Stanford, em 1974;
e a das aplicações da computação no ensino
médico, exemplificado pelos primeiros sistemas de avaliação
formativa, tutoriais eletrônicos e simulações de casos
clínicos, como os desenvolvidos pelo Dr. A. Octo Barnett, na Universidade
Harvard, que também foi o inventor do MUMPS (Massachussetts General
Hospital Utility for Multiprogramming Systems) em 1972, uma linguagem
de programação multiusuária voltada aos bancos de
dados médicos, que teve um papel fundamental nos primeiros sistemas
de informação hospitalar e laboratorial.

Dr. Donald Lindberg
No mesmo período de tempo ocorreu um forte programa de desenvolvimento
da informática médica nos Estados Unidos, financiado em grande
parte pela Biblioteca Nacional de Medicina. Em 1986, o Dr. Donald Lindberg,
um dos "pais" da informática médica americana,
tornou-se o diretor do NLM e deu início a uma nova era. Um patologista
médico treinado, o Dr. Lindberg conduziu a NLM para grandes realizações,
inclusive o refinamento adicional do MEDLINE, a base de dados bibliográficos
do MEDLARS, o desenvolvimento da base de imagens "Ser Humano Visível"
e do UMLS, assim como o financiamento de conexões à Internet
para hospitais rurais e de projetos de telemedicina. Sob sua direção,
a NLM continua sendo o principal patrocinador da pesquisa acadêmica
na área de informática médica.

Sala com fitas magnéticas
do sistema MEDLARS
O Futuro
Embora a área de computação médica tenha
contribuído significativamente para a melhoria da atenção
à saúde, ainda há tremendos desafios para os informatas
médicos. Por exemplo, freqüentemente imagina-se que os benefícios
de um sistema de registro médico sem papel são facilmente
percebidos, uma vez que toda a informação disponível
em papel é digitalizada.
Um estudo feito por Shortliffe lança uma sombra sobre este otimismo.
O estudo de 168 visitas sucessivas realizadas a uma clínica de Medicina
Interna revelou que, apesar dela ter toda as histórias clínicas
de seus pacientes, com resultados de laboratório e de radiologia,
em 81% das visitas alguma informação julgada importante pelo
médico não estava disponível. Em outras palavras,
esta informação não tinha sido capturada no processo
de gerar a informação que julgamos necessária hoje.
Este é um problema que provavelmente já teria sido resolvido
através de digitalização dos recursos de informação
baseados em papel, tornando-os disponíveis para os médicos.
É um problema de informação, não um problema
de informática!
Achados semelhantes foram relatados pelo Workgroup for Electronic
Data Interchange, de que 50% dos registros médicos baseados
em papel hoje, ou estão perdidos completamente ou contêm dados
incompletos. Outro estudo feito em 1996, encomendado pelo Institute of
Medicine dos EUA, descobriu que cerca de 30 % das prescrições
de tratamento médico nunca são documentadas.
Estes são problemas de aquisição de informação
e requerem um conhecimento íntimo do conteúdo de informação,
o ambiente no qual ela é coletada, e a tecnologia que é usada
para capturá-la, de maneira a obter uma solução viável.
Estas são as ferramentas de um informata médico que progride.
Em resumo, o campo de informática médica não é
novo, contudo parece estar em sua infância no que se refere a incrementar
a prática médica. A informática médica tem
o potencial de beneficiar o atendimento ao paciente, de uma maneira tão
efetivao quanto a descoberta de um novo medicamento ou terapia. Os seus
benefícios diretos serão derivados do fato de podermos aumentar
a capacitação e a ação dos médicos e
de outros profissionais de saúde , através do melhor acesso
ao conhecimento médico e informação. Esta é
a promessa de informática médica e estará à
frente evidentemente do processo de forjar uma nova prática médica
na era da informação.
Bibliografia
Collen, MF - A History of Medical Informatics in the United States:
1950-1990. AMIA Press 1996
Shortliffe EH & Perrault, E. (Eds.) - Medical Informatics : Computer
Applications in Health Care. Addison Wesley, 1990.
Collen MF. Origins of Medical Informatics. West J Med. 1986 Dec;
145:778-785.
Lindberg DA. The National Library of Medicine and Medical Informatics.
West J Med 1986 Dec 145:786-790.
Veja também: História da
Informática Médica no Brasil
O Autor
Michael A. Hogarth é médico,
professor e pesquisador em Informática Médica da Universidade
da Califórnia em Davis, EUA, e membro do Internet Working Group
da American Medical Informatics Association.
Email: mahogarth@ucdavis.edu