O Registro Clínico Computadorizado no Hospital

Jaime O. Ilha

Núcleo de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas
Email:ilha@turing.unicamp.br

Revista Informédica, 1(3): 5-8, 1993.


Introdução

O emprego da informática na área médica confunde-se com o próprio início da utilização dos computadores. As primeiras aplicações na área hospitalar ou de registro clínico remontam-se à década de 60, quando surgiram o Technicom Medical Information System (TMS), o COSTAR e, na década seguinte, os sistemas HELP, PROMIS e Regenstrief Medical Record System.

Se, no início, eram poucas as instituições que podiam lançar mão desta tecnologia, devido ao alto custo dos computadores de grande porte, logo o avanço tecnológico e o conseqüente barateamento dos equipamentos permitiu que até mesmo os departamentos passassem a adquirir minicomputadores para informatização de suas rotinas. Esta realidade passou a se tornar uma constante a partir do final da década de 70 e início dos anos 80. Esta foi também a época da consolidação dos grandes sistemas de informação hospitalar, que tinham por objetivo a automatização de todas as rotinas administrativas de um hospital. Já no final dos anos 80, o avanço tecno-lógico também permitiu que até mesmo microcomputadores viessem a fazer parte do arsenal utilizado pelos hospitais para a informatização de seus serviços. Surgiram então hospitais totalmente informatizados, com terminais individuais para cada leito (bedside terminals). Os maiores beneficiados com esta nova ferramenta foram as pequenas instituições e mesmo clínicas privadas, as quais puderam assim viabilizar economicamente o emprego de computadores.

A análise inicial do quadro acima dá margem a que se imagine a existência de um grande avanço na qualidade da assistência prestada aos pacientes. No entanto, é necessário esclarecer que, principalmente em ambientes hospitalares, a informatização tomou conta basicamente das rotinas de caráter administrativo. O computador permaneceu distante das rotinas de caráter eminentemente clínico e, por conseguinte, da mão dos médicos, salvo raras exceções.

Obviamente, mesmo a informatização de caráter administrativo traz benefícios quanto à qualidade de atendimento prestada. No entanto, não se pode deixar de lembrar que a atividade de uma instituição de saúde gira em torno dos pacientes e que estes, quando a procuram, comunicam-se diretamente com o médico para que este formule suas hipóteses diagnósticas e estabeleça um plano terapêutico adequado. Alguns pontos fundamentais advém ou devem ser aliados a esta ponderação:

Assim, é factível supor que um avanço significativo da qualidade do atendimento prestado depende da informatização do prontuário clínico e da interação do médico com o sistema, como provedor e usuário das informações. No entanto, conforme já mencionado, isto até então não tem ocorrido.

A grande complexidade do ambiente hospitalar é certamente um dos fatores responsáveis pela demora na informatização deste tipo de rotina, já que muito tempo teve de ser dispendido, até então, para a automatização dos procedimentos administrativos e de departamentos tais como o laboratório de análises clínicas e os serviços radiológicos. A necessidade de evolução do ponto de vista tecnológico é também outro fator, como discutiremos mais adiante.

Paradoxalmente, se a complexidade até então permitia realçar os benefícios parciais advindos da informatização até então empregada, a crescente complexidade da medicina passou a deixar clara, nos últimos anos, a insuficiência desta abordagem. Em 1988, como conclusão dos trabalhos do "Working Group 10" da IMIA (Hospital Information Systems), ressaltava-se que os registros clínicos estavam se tornando o foco de interesse para o desenvolvimento de sistemas de informação hospitalar. Os altos custos da medicina americana têm chamado a atenção de um significativo segmento de pesquisadores de informática médica, que, na busca de uma solução que, mantendo ou melhorando a qualidade de atendimento, venha a evitar desperdícios, colocam como uma de suas principais metas a informatização do registro clínico. Encontram-se atualmente livros específicos sobre o assunto, como também têm sido realizados congressos que tratam particularmente deste problema. Pesquisas também revelaram que 50% dos hospitais americanos pretendem adotar registros clínicos computadorizados (Computerized Patient Records) nos próximos cinco anos. São numerosos os obstáculos a serem transpostos visando a informatização do registro clínico e a real utilização do computador por parte do médico. Pretende-se, neste artigo, e nos que se seguirão nos próximos números, abordar estes aspectos.


O médico e o computador

Se o médico, como veículo de comunicação para com o paciente, é o principal provedor de infor-mações no ambiente médico hospitalar, porque ele não está em contato com o equipamento ? Apesar de parecer natural, são vários os motivos que, historicamente, impedem o contato do médico para com o computador. E este é um obstáculo cuja transposição é de fundamental importância, sob pena de nenhum outro esforço ser justificado. Em linhas gerais podem ser enumerados os seguintes motivos para a rejeição, por parte dos médicos, dos sistemas informatizados: Se o Sistema de Informação Hospitalar (Hospital Information System - HIS) necessita das informações providas pelo médico, é natural se imaginar que ele (Sistema) lhe dê algo em troca. Caso contrário, que vantagem teria o médico em "perder ainda mais tempo com o computador" no seu dia-a-dia já atri-bulado ? Sistemas puramente administrativos dependem da informação médica, mas não dão quase nada em troca. Para que se consiga o envolvimento do médico, é necessário, de alguma forma, proporcionar algo que o permita notar que o tempo dispendido implica a economia de tempo e esforço na realização de uma série de outras tarefas: desde algo relativamente simples como auxílio à prescrição (sem precisar repetir todo dia), até algo mais complexo como o apoio à decisão e entrada inteligente de dados. O melhor enfoque visando "proporcionar algo" para o médico é confecção do registro clínico computadorizado, já que é este o principal instrumento de registro e comunicação utilizado pelo médico como meio de interação para com o hospital .

Todavia, de nada adiantaria um registro clínico computadorizado caso não houvesse facilidade de interação com o computador. Existem alguns exemplos de sistemas especialistas - portanto também totalmente voltados a contribuir para com o médico - que não obtiveram sucesso justamente pela dificuldade de interação. É importante lembrar que o médico praticamente não tem tempo livre para treinamento. Além disto, como figura principal dentro do ambiente hospitalar, a falta de domínio da tecnologia produz uma sensação de falta de controle e/ou perda de sua posição, o que lhe impele a evitar o contato com o computador. Por conseguinte, sistemas eminentemente clínicos só serão úteis na medida venham a ser facilmente entendidos pelos médicos, exigindo o mínimo esforço para aprendizado. Eles têm de se aproximar o máximo possível pictograficamente e funcionalmente do registro clínico manual, obviamente sempre que isto não comprometa a funcionalidade adicional proveniente dos sistemas computadorizados. Precisam ser intuitivos, auto-explicativos e, além disto, extremamente tolerantes a falhas de operação. Infelizmente, esta não é a realidade da maioria dos sistemas comerciais. Só agora, com a introdução de ambientes e padrões de interface gráfica (Motif, Windows, Macintosh) estes aspectos começam a ser valorizados.

Finalmente, como fronteira tecnológica no que tange à interação com o computador, está o desejo de que a intercomunicação possa também ser realizada de maneira oral, ou seja, através do reconhecimento de voz por parte do computador. Este e outros aspectos tecnológicos de fronteira serão abordados no próximo número.


Os Sistemas Computadorizados

Pressupondo-se ter como resolvido o problema de interação do médico para com o computador, quais seriam os problemas adicionais ? É importante notar que os módulos dos sistemas hospitalares têm, além do valor intrínseco relativo à função que executam, o grande valor de servirem como meio de interco-municação entre os diversos setores. Alguns autores até consideram que este é o principal papel de um sistema de informação hospitalar. Neste sentido, a falta de integração entre os diferentes módulos vem a ser um sério problema, cujas origens são, de certa maneira, históricas.

Devemos recordar que a introdução da informática nos diferentes ambientes hospitalares só foi mais consistente a partir de meados da década de 70, ocasião em que os diversos departamentos optavam pela aquisição de minicomputadores (e programas) capazes de gerenciar suas atividades de rotina. Como departamentos, necessitavam das informações de caráter global da instituição e esta, por sua vez, necessitava das informações lá geradas. A posterior interligação destes equipamentos possibilitou a intercomunicação, mas esta veio acompanhada de uma série de problemas, basicamente relacionados com a duplicação de informações e conseqüente inconsistência entre as diferentes versões armazenadas em cada equipamento, devido a atualizações de caráter exclusivamente local. Este tipo de conexão, que é conhecido como "interfaceamento" entre os diferentes sistemas, traz ainda problemas adicionais, se considerarmos a possibilidade dos módulos serem fornecidos por diferentes fabricantes: a falta de um padrão de interco-municação.

Praticamente, até hoje, inexistem padrões, sendo este um dos esforços de grupos de trabalho das sociedades de informática médica americana e mundial. Mesmo se considerarmos um único fabricante, implementador de seu protocolo de comunicação entre os diferentes módulos, continua sendo necessária a adoção de uma filosofia corporativista, ou seja, aquela que contemple a existência de um conjunto de informações de caráter global da instituição e, portanto, não pertencente a aplicações locais, evitando-se assim a duplicação desnecessária de informações. Bleich considera que a grande maioria dos sistemas até então desenvolvidos são do tipo "interfaceado" e não do tipo "integrado". As vantagens do primeiro estariam na não dependência, por parte do hospital, de um único fabricante (caso houvessem padrões de intercomunicação). Os sistemas integrados, por sua vez, baseiam-se em uma nova concepção na qual a organização é vista como um todo, cabendo aos departamentos o detalhamento dos dados exclusivos da especialidade. Além disto, sendo de concepção única, ter-se-ia como vantagem adicional a existência de um único padrão de interação para com os profissionais de saúde em todo o sistema, evitando-se assim problemas adicionais com treinamento. Esta concepção vem de encontro ao conceito de banco de dados distribuído, também mencionado por outros autores5.

É importante, no entanto, frisar que o conceito de sistemas integrados não implica necessariamente um único fabricante. Talvez seja esta a melhor solução atual, pela falta de padronização, mas não necessariamente a única. O conceito de banco de dados distribuído traz, sim, a idéia de um único "dicionário de dados", redundância controlada e outros aspectos técnicos que conduzem à idéia de unicidade, mas nos seus aspectos positivos. Em termos do problema em questão, equivale à necessidade de um planejamento único. Este é, sem dúvida, necessário ao nível organizacional, prévio a qualquer processo de infor-matização.

Em um segundo sentido, está a grande necessidade de criação de padrões, não só relativos a protocolos de comunicação entre diferentes tipos de aplicações, mas também quanto ao interface para com o usuário e, mesmo, o estabelecimento do conjunto mínimo de dados médicos que deva ser considerado como de natureza global da instituição. Esta filosofia talvez se encaixe mais adequadamente com a abordagem orientada a objetos, na qual os diversos módulos, com interface padrão, comunicar-se-iam entre si a fim de promover a funcionalidade e unicidade do sistema como um todo. Muito há que se fazer em termos de padronização: se os avanços do ponto de vista de equipamentos são enormes em questão de 3 ou 4 anos, não se deve esperar algo acabado neste sentido antes do próximo século.

Além disto, não se deve deixar de mencionar que, independentemente da existência dos computadores, outro fator que impede a comunicação adequada no meio médico é a própria falta de padronização da terminologia médica. Isto engloba a padronização de diagnósticos, procedimentos, e mesmo dos termos utilizados para descrever o estado de saúde dos pacientes. Grandes esforços têm também sido realizados neste sentido, sendo o principal o projeto gerenciado pela Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos visando a criação de um Sistema Unificado de Linguagem Médica (Unified Medical Language System - UMLS).

Nos próximos artigos desta série, discutiremos os diferentes aspectos de padronização mencionados, que precisam ser estabelecidos. Também discutiremos quais são as características/funções necessárias em um registro clínico computadorizado para que ele tenha chance de ser realmente utilizado pelo médico. Mais adiante, discutiremos os aspectos tecnológicos, a nível de evolução de hardware, que ainda não atendem ao que se imagina ser necessário para a criação e real utilização do "registro clínico computadorizado". Por fim, caberá abrir a discussão sobre as implicações éticas e legais advindas da adoção de tais sistemas.


Referências Bibliográficas

  1. Shortliffe, E. H. & Perreault, L. E. Medical Informatics: Computer Applications in Health Care, Addison-Wesley, Reading, 1990, 715pp.
  2. Bakker, A. R. Trends in Modern Hospital Information Systems. IN:Lun, K.C. et alii Eds. Seventh World Congress on Medical Informatics, Proceedings, Geneva, 6-10 Sept. 1992, North-Holland, Amsterdam, 1992, p. 182-187.
  3. Ball, M. J. & Collen, M. F. Aspects of the Computer-based Patient Record. Springer-Verlag, New York, 1992, 316pp.
  4. --------, 1993 Spring Congress, Americam Medical Informatics Association, 9-12 Ma 1993, St. Louis.
  5. Winfree, R.G. et alii. Centrally Guided Distributed Information Systems: The Next Step. IN: Ball, M. J. et allii Eds. Healthcare Information Management Systems: A pratical guide. Springer Verlag, New York, p. 19-27, 1991.
  6. Bleich, H.L. & Slack, W.V. Design of a Hospital Information System: A comparision between Interfaced and Integrated Systems. IN: Lun, K.C. et alii Eds. Seventh World Congress on Medical Informatics, Proceedings, Geneva, 6-10 Sept. 1992, North-Holland, Amsterdam, 1992, p. 174-177.
  7. U.S. Department of Health and Human Services, National Institutes of Health, National Library of Medicine, Unified Medical Language System, 4th experimental edition, April 1993

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