NIACIN: Um Programa para o Desenvolvimento de Sistemas Especialistas em Medicina

Roberto Silva e Marisa M.G. Parize



Revista Informédica, 2 (11): 3-16, 1995.


Desde o desenvolvimento da Inteligência Artificial, têm surgido diversos sistemas de apoio ao diagnóstico médico (SADMs), voltados a várias especialidades, tais como medicina interna [1], doenças bacterianas[2], doenças renais [3], etc. Estes programas são denominados de sistemas especialistas, ou sistemas expert, e podem funcionar de diversas maneiras, sendo a mais comum uma consulta com base em questionamento do usuário. O mesmo fornece sintomas e sinais do paciente, e o programa elabora raciocínios lógicos e plausíveis a partir dessa informação, fornecendo, então, os prováveis diagnósticos. Esses raciocínios automatizados utilizam uma base de conhecimentos sobre a especialidade médica em questão, armazenada previamente no computador. Na evolução da Inteligência Artificial em Medicina, inicialmente cada SADM correspondia a um programa especialmente desenvolvido para este fim. Posteriormente, entretanto, surgiram programas gerais, denominados "shell", ou "vazios", que permitem se possa trabalhar com diferentes bases de conhecimento, usando um mesmo programa[4]. O surgimento de versões comercialmente disponíveis de programas `shell" em Inteligência Artificial aumentou significativamente o número de sistemas especialistas desenvolvidos em Medicina, devido à facilidade que os mesmos oferecem[5].

Com a finalidade de oferecer aos profissionais da área de saúde uma ferramenta que possa ser utilizada para montar sistemas especialistas médicos em dife-rentes especialidades, ou seja, um sistema concebido de tal maneira que o mecanismo de raciocínio automático seja independente da base de co-nhecimento, desenvolvemos um programa "shell" denominado NIACIN. Este sistema foi baseado em parte em um primeira tentativa de desenvolver sistemas objetivos de apoio ao diagnóstico, denominado IASIM[6], assim como em nossa experiência prévia no desenvolvimento de diversos SADMs específicos, tais como no apoio ao diagnóstico em anatomia patológica, em febres hemorrágicas, em hemoptises e em doenças infecto-parasitárias. O presente artigo descreve a metologia utilizada, que pode ser útil para exemplificar como um sistema especialista genérico pode ser desenvolvido.


A Representação do Conhecimento

Para que um sistema especialista possa ser especificado de forma sistemática e eficiente, é necessário adotar alguma forma de representação do co-nhecimento, ou seja, como os diferentes aspectos do conhecimento médico sobre alguma área serão representadas formalmente nas estruturas de dados que constituem a base de conhecimento. O sistema NIACIN utiliza uma forma simples e intuitiva de representação de conhecimento, através de listas, contendo:

Explicando melhor: todo descritor (sinal, sintoma ou resultado de exames especializados ou testes de laboratório) deve ser acompanhado das seguintes medidas:

Confirmabilidade: a freqüência relativa (entre 0 e 100 %) nas doenças (diagnósticos) que constituem a base de conhecimento. Descritores patognômicos tem confirmabilidade alta (igual a 100), enquanto que sintomas muito prevalentes, tais como tosse, febre,etc., têm confirmabilidade média ou baixa;

Importância intrínseca: é o grau de consideração que se tem de um sintoma ou sinal isolado, sem se estar pensando objetivamente em uma hipótese (ou seja, avaliação subjetiva, pelo médico, da gravidade do sintoma). Por exemplo, hematêmese tem importância intrínseca alta, enquanto que espirros, baixa.

Essas informações são fornecidas à base de conhecimento utilizando critérios qualitativos, fáceis de serem obtidos de qualquer especialista médico ou a partir da literatura médica pertinente. O programa, através de seus módulos, se encarrega de construir a base de conhecimentos, e, em seguida de consultá-la.


O Programa

O sistema NIACIN é composto por um programa principal, onde estão as rotinas de manipulação de arquivos e de consulta, e uma série de arquivos independentes, onde estão as bases de conhecimento. O programa principal, por sua vez, é dividido em três módulos: Arquivos, Edição e Opções.

No módulo de Arquivos, estão as funções do programa que permitem ao usuário manipular as diferentes bases de conhecimento armazenadas em disco, assim como a interface com o sistema operacional (Carregar, Salvar, DOS, etc.).

No módulo de Edição, é possível optar por diferentes meios de montar e alterar uma base de co-nhecimento. Estão aí incluídas as funções necessárias para incluir novos diagnósticos, sintomas e tratamentos, corrigir ou modificar os que já estão incluídos na base, e indicar associações entre os termos da base. Essas associações podem ser efetuadas entre diagnósticos e sintomas, entre sintomas e outros sintomas, e entre diagnósticos e tratamentos. Na associação entre diagnósticos e sintomas, utiliza-se como elemento de associação a freqüência relativa de ocorrência do sintoma na doença. Como esses valores nem sempre estão disponíveis em forma quantitativa (por exemplo, "febre ocorre em 95 % das bacteremias"), optamos por utilizar uma forma de categorizar qualitativamente essas associações, usando termos como "frequentemente", "quase nunca", "raramente", etc., de acordo com a metodologia proposta por Adlassnig[7], e denominada de variáveis semânticas (Quadro 1). Podem ser especificadas, também, associações entre sintomas. com o objetivo de evitar que o sistema pergunte coisas ambíguas ou desnecessárias. São relações conceituais, ou semânticas, entre sintomas, que indicam identidade (dois termos da base que significam a mesma coisa, com nomes diferentes, tais como dor de cabeça e cefaléia), excludência (a existência de um termo exclui o outro, tais como sexo masculino e feminino) e pertinência (quando um termo faz parte de outro, ou pertence a uma classe, tais como hepatite e doenças do fígado).


Variável Semântica Valor
Sempre 1.00
Quase Sempre 0.99
Muito Freqüente 0.90
Freqüente 0.75
Comum/Desconhecido 0.50
Raro 0.25
Muito Raro 0.10
Quase Nunca 0.01
Nunca 0.00

Finalmente, no módulo de Opções estão as funções usadas para a listagem e consulta à base de co-nhecimento. A listagem pode ser feita de diferentes formas, tais como: quais são os sintomas de uma determinada doença, quais as doenças que apresentam um determinado sintoma, quais os tratamentos para uma determinada doença, etc. A consulta ao sistema especialista, para realizar um determinado diagnóstico e propor tratamentos para o mesmo, se faz mediante uma lista de sintomas, que aparece em ordem alfabética na tela do computador. Pode-se trabalhar com todos os sintomas cadastrados, ou apenas com aqueles referentes a um determinado sistema orgânico (cardiovascular, respiratório, locomotor, etc.). Após o usuário ter informado os dados iniciais, o NIACIN passa a gerar perguntas adicionais, visando a di-ferenciação das hipóteses diagnósticas. À medida que isto é feito, o programa informa na tela as estratégias de raciocínio que estão sendo seguidas, assim como uma pontuação quantitativa para as três hipóteses mais prováveis até aquele momento. Os critérios que o programa utiliza para a avaliação comparativa das hipóteses candidatas é uma combinação das técnicas usadas pelos clássicos sistemas MYCIN[2] e INTERNIST[1], as quais aplicamos previamente no desenvolvimento de um sistema especialista em Medicina Tropical[8]. Assim, consideramos que existem duas medidas de avaliação para cada diagnóstico, uma chamada crença (MC), e outra chamada descrença (MD). O fator de confiança (FC) é a diferença entre as duas, ou seja FC = MC-MD. Para que uma hipótese possa ser aceita, o fator de confiança computado para ela pelo sistema deve ser igual o maior que 70. Além disso, cada hipótese deve ter pelo menos quatro descritores associados a ela.

Para a avaliação das hipóteses candidatas, o sistema considera quatro condições:

A crença e a descrença são computadas automaticamente pelo programa para cada um dos pares diagnóstico-descritor, conforme haja congruência ou incongruência entre ambos. A seguir, as medidas de crença e descrença em cada diagnóstico são incrementadas ou diminuídas de acordo com a mesma técnica utilizada pelo sistema MYCIN: Por exemplo:

MC (H, D1 e D2) = MC (H,D1) + MC (H,D2) * (1-MC(H,D1) onde: O sistema NIACIN modifica automaticamente MC e MD, multiplicando-as pelas percentagens de congruência e incongruência, respectivamente, e, a seguir, calcula os fatores de confiança (FC) para cada uma.

Ao final, o programa apresenta uma lista das 10 hipóteses diagnósticas com os maiores fatores de confiança, em ordem decrescente. Se o usuário desejar, pode ter acesso a pequenas explanações sobre as razões de confirmação ou descarte das hipóteses candidatas. É possível, ainda, visualizar-se, através de um histograma,. o desempenho relativo das diferentes hipóteses, e quais os sintomas que foram considerados durante a consulta. Pode-se retomar a consulta inicial, retirando-se ou acrescentando-se sintomas, e observar o comportamento da nova situação.

O sistema NIACIN foi desenvolvido na linguagem Quick BASIC, versão 4.5 (Microsoft, Inc.) e pode ser executado em computadores IBM-PC compatíveis, usando o sistema MS DOS. Tem capacidade de armazenamento de até 300 diagnósticos e 300 descritores.


Avaliação do Sistema

O sistema NIACIN foi testado com uma base de conhecimento contendo 16 causas de vaginites. Os sintomas desta base se constituem, na maior parte, de características de leucorréias, tais como aspecto, odor, prurido e cor. Em adição, são considerados, como sintomas, as características gerais das lâminas de esfregaço de secreção vaginal, em suas diferentes preparações (a fresco, Papanicolaou e coloração pelo método Gram). O sistema foi capaz de, mediante informação dos dados iniciais simples, proceder a consultas, com resultados acurados e satisfatórios.

O sistema mostrou-se ser capaz de trabalhar com diferentes bases de conhecimento (até agora desenvolvemos bases sobre vaginites, raiva, diarréia infantil,.diarréia infecciosa em neonatos, e doenças exantemáticas). A montagem dessas bases, usando o NICIN, é relativamente simples e rápida. A coleta de dados fiéis e definitivos constitue-se, entretanto, no passo de maior dificuldado no desenvolvimento de qualquer sistema especialista. O uso de variáveis semânticas, no entanto, contribui para facilitar a assimilação de dados encontrados na forma textual, os quais são muito mais fáceis de se obter, através da literatura médica e de entrevista aos especialistas humanos, do que, por exemplo, tabelas de ocorrência e sintomas e prevalência de doenças, como é necessário nos sistemas baseados no teorema de Bayes. As bases de conhecimento que abordam campos específicos de conhecimento tendem a ser me-lhor avaliadas pelo sistema. Assim, o mecanismo de inferência utilizado no NIACIN, que é semelhante ao usado no programa TROPICAL, foi testado com sucesso em 40 casos clínicos e anatomoclinicos obticos junto ao Hospital Universitário da UFRJ, e na revista "New England Journal of Medicine", seção de "Case Records". Nesse teste, com casos de doenças incluídas e não incluídas na base de conhecimento (doenças infecto-parasitárias), o índice de acerto foi de 77,5 % dois casos analisados. Os erros que ocorreram foram devidos a falta de homogeneidade ortográfica dos termos na base de conhecimento e de relações causais mal definidas.

Em conclusão, julgamos que o sistema NIACIN pode ser facilmente utilizado por profissionais de saúde para o desenvolvimento de sistemas especialistas em qualquer área da Medicina. O seu uso mais extenso nesse sentido, servirá para realizar uma melhor avaliação de suas potencialidades e desvantagens.


Bibliografia

  1. Miller, R.A.; Pople, H.E., Myers, J.D. - Internist. An experimental computer based diagnostic consultant for general internal medicine. New Engl. J. Med., 307: 469-476, 1982.
  2. Shortliffe, E.H. - Computer-based Medical Consultations: MYCIN. New York: Elsevier, North Holland, 1986.
  3. Kulikowski, C.A. - Artificial Intelligence methods and systems for medical consultation. IEEE Trans. Patt. Anal. Mach. Recogn., 2(5): 464-4765, 1980.
  4. Shortliffe, E.H. - Clinical decision support systems. In: Shortliffe, E.H. et al. - Medical Informatics. Reading: Addison-Wesley, 1990.
  5. Harmon, P. - Sistemas Especialistas. Rio de Janeiro: Editora Campus, 155-160, 1988.
  6. Silva, R.; Carvalho-Jr., P.M. - IASIM: Um sistema simples de apoio à decisão médica. Rev. Bras. Informática em Saúde, 1(5): 32-33, 1987.
  7. Adlassnig, K.P.; Kolarz, G. - CADIAG-2: Computer-assisted medical diagnosis using fuzzy subsets. In: Approximate Reasoning in Decision Analysis, Gupta, M.M. & Sanchez, M. (Eds.), Amsterdam: North-Holland, p. 219-247, 1982.
  8. Silva, R., Infantosi, A.F. - Sistema especialista em Medicina Tropical. Anais do III Congresso Brasileiro de Informática em Saúde, Gramado, RS, outubro de 1992.

Sobre os Autores

Roberto Silva é clínico geral e homeopata e mestre em Engenharia Biomédica pela COPPE/UFRJ, tendo se especializado em Inteligência Artificial aplicada àl Medicina. Mariza M.G. Parize é médica tocoginecologista. Endereço: Ria Bela Vista, 275, São Joaquim da Barra, SP, CEP 14600-000, Tel. (016) 728-6593
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